Mariana (*), 7 anos, quer ser advogada. "Que legal", digo eu, e pergunto por quê, e ela me responde, "pra ajudar a mamãe na separação com o papai". A mãe, que (também) é advogada, sorri, meio amarelo, mas percebo uma certa tensão. Não é dificil compreender por quê. Sílvia (*) me relata que não tem sido fácil sustentar a relação com o ex-marido, e ela frequentemente se pergunta se, de fato, a vida melhorou depois que se separaram, há cerca de dois anos. As brigas eram constantes, muitas vezes na frente da menina, mas agora eles continuam brigando, mas com um grau de agressividade muito mais explícito. E, como a única coisa que os mantêm próximos é o cuidado de Mariana, inevitavelmente os assuntos e as brigas giram em torno da criança.
Não importa a idade, crianças têm limitações de compreender o que está ocorrendo durante um divórcio, o que os pais sentem, e por quê. Apesar das limitações, as crianças continuam tentando interpretar - à luz de seus recursos - a situação, que na maioria das vezes, é tensa e conflituosa.
As crianças tendem a ver as coisas de sua própria perspectiva, vale dizer, elas vêem a si mesmas como causadoras dos eventos conflituosos entre os pais. Crianças muito pequenas frequentemente culpam a si próprias ou inventam razões imaginárias para a separação de seus pais. O medo é um frequente visitante na mente dessas crianças - medo de que seus pais simplesmente saiam pela porta e nunca mais voltem; medo de que seu pai adoeça longe do cuidado de sua mãe (e morra); medo de que o pai/a mãe não o(a) ame mais; medo de que o ladrão (ou o bicho-papão) agora entre em casa, já que o pai não está mais; medo de que o Papai-Noel não venha no Natal (afinal ela não foi uma boa criança); medo de que o Demônio leve a todos pro inferno, mas principalmente a ela, que causou a separação dos pais, medo...medo...
É inevitável que a solução mágica apareça, como um aplacador desses medos: meus pais um dia vão voltar a ficar juntos. Não raro, este sentimento também é manifesto de forma inconsciente pelo desejo de um dos pais (ou até de ambos!). Mesmo quando experimentam violência entre os pais (expressa por abuso físico, mas mais comumente verbal), as crianças continuam a exercitar um profundo senso de lealdade para ambos os pais.
Mas certas vezes, este processo gera um tremendo esforço na mente ainda imatura de uma criança. Ao lado da mãe, há a tendência de que a criança passe a "negar" o pai, a dizer que não quer mais sair ou conversar com ele, a minimizar sua importância - o que é valorado pela mãe, naturalmente, magoada pelas situações frequentes de abuso verbal. Costumo ouvir de mães que seu/sua filho(a) "amadureceram muito" após a separação, e "resolveram" muito rapidamente a situação, e citam exemplos tais como "o pai dela não veio no aniversário e ela disse, 'tudo bem, mãe, eu não ligo'", ou "ele ouviu uma discussão séria entre nós, e no final de semana, não quis sair com o pai". Esta situações representam, usualmente, um processo dolorido e uma grande sobrecarga para a criança. A medida em que os pais continuam as discussões, a criança é capturada - até porque na absoluta maioria das vezes ela é o tema - e se vê obrigada a tomar partido, agradando a ambos os pais. Um peso e tanto para uma criança.
Vivencio isto em relação a situações de doença. Quando uma criança adoece na presença de um dos pais (no final-de-semana com o pai, por exemplo), é usual que a mãe culpe o pai pelo descuido. Um outro dia, uma mãe se queixou que sua filha tinha passado o final de semana com o pai, e apresentou febre desde o sábado pela manhã. Como a febre não melhorava, imagine a confusão criada quando, no Domingo a noite, a mãe se deu conta que o pai vinha administrando Dipirona (um anti-termico), em gotas, na narina da criança febril, porque também estava com o nariz obstruído. Imagine, então, o que passa na cabeça da criança quando ouve seus pais brigarem por que, ao final das contas, ela, a criança, estava doente, e o outro, o pai, não pôde cuidar adequadamente. "A culpa é minha, eu é que fiquei doente".
Não sei se li em algum lugar, mas gosto de usar o termo "criança descasada", ou seja, uma criança sem o casal original, para descrever a situação de uma criança envolvida na separação de seus pais. Não quero aqui, é bom enfatizar, desconsiderar a notável mudança na teia social em relação a organização das famílias de hoje (famílias de mãe-e-filho, ou pai-e-filho; famílias de avós-e-filho; famílias de casais homoafetivos-e-filho; famílias de filhos mais velhos-e-filho mais novo). Acompanho todas essas situações no consultório, e tenho a felicidade de compartilhar da alegria de muitos desses (novos) núcleos familiares. Nada impede que uma reorientação familiar seja bem sucedida, e uma criança descasada pode se desenvolver com amor, suporte e harmonia no seio das famílias novas que surgem (porque mesmo quando os pais separam e permanecem sós, são duas novas famílias que surgem).
O ponto é:
há se de cuidar do broto, como diz Milton Nascimento, e, por mais difícil que possa ser (e é muito difícil), os pais têm que atuar atentivamente com seu filho. Fiz
uma lista (hmm, essas listas....) que é bem genérica, mas talvez possa ajudar no meu conceito de atentividade para com uma criança.
E Mariana (*), e Sílvia (*) , e tantas outras mães, pais e crianças descasadas com quem convivo, espero que encontrem seu equilíbrio.
(*) nomes fictícios.